Cósmico leitor,
Alguns encontros não acontecem entre pessoas, mas entre tempos.
Esta história nasce do instante em que tudo deveria ser celebração, e se transforma em silêncio. É sobre um Natal que deveria aquecer e acaba revelando o quanto o frio pode morar muito além do clima.
Mais um texto escrito em colaboração, dessa vez com a maravilhosa Elis Guestari. Ao escrever pensamos no esquecimento que se acumula aos poucos. As mãos deixaram de se tocar. Aqui, o inverno não chega com a neve, mas com portas fechadas e mesas vazias.
Paloma não entra em uma vila perdida por acaso. Ela atravessa um limiar antigo, onde deuses não morrem, só adormecem quando deixam de ser chamados.
Este texto é sobre lembrar. Mesmo quando dói.
Especialmente quando dói.
O Solstício
Duas semanas. Era o tempo que Paloma teria que passar com a família desconhecida do seu novo namorado. Não era bem uma mulher sociável, mas fazia um certo esforço pelo amor que tinha por Juan Carlo.
Se conheceram em uma viagem, em Minas Gerais. Paloma caiu em uma trilha que percorria em uma cidadezinha isolada e tempestuosa, e foi socorrida no hospital da cidade mais próxima, onde, coincidência ou não, Juan cobria um plantão de última hora.
Foi amor à primeira vista, e desde que o belo cavalheiro de jaleco branco pediu sua mão em casamento, era hora de finalmente conhecer a família do chileno.
Por sorte, seu espanhol não era dos piores, mas caprichosa como era, Paloma se esforçou por meses para aprender os termos mais usados — e até praticamente extintos — para não passar vergonha na frente da família do futuro marido.
Estavam juntos havia três anos, mas todas as viagens marcadas acabavam dando errado de alguma forma.
Esse ano era diferente, algo em seu coração dizia que nada daria errado — dessa vez.
Juan embarcou dois dias antes da noiva, pois houve uma confusão com as passagens e a companhia aérea não soube explicar como eles conseguiram comprar dois bilhetes tendo apenas um assento disponível naquele avião.
Com uma passagem de primeira classe como pedido de desculpas, Paloma sobrevoou por cinco horas até pousar em Santiago, onde alugou um carro e caiu na estrada até a cidade Natal do noivo.
Era dia vinte e quatro de dezembro, precisava chegar antes das seis para a ceia e, principalmente, para não começar com o pé esquerdo com uma família que culturalmente era muito pontual.
Infelizmente, as estradas não colaboraram muito, devido à geada intensa e inesperada nos últimos dias — isso somado ao congestionamento do feriado.
Mesmo assim, Paloma persistiu, colocando uma música animada e admirando a paisagem nos momentos em que o trânsito parava. Restava apenas uma hora para chegar ao seu destino, por sorte o GPS calculou uma rota alternativa para cortar a via principal e chegar à cidade vinte minutos antes — o que, além de poupar o trânsito, lhe permitiu uma vista privilegiada da cordilheira dos Andes.
Conforme seguia a rota, mais vazia a estrada ficava. Àquela altura, se não tivesse completado o tanque, poderia ter um terrível problema — mas, depois de tantas tentativas do universo para impedir esse encontro, Paloma estava mais do que preparada.
Passou por alguns monumentos de pedra com aparência histórica. Vegetações brancas pela neve e até mesmo um rebanho de Guanacos. Estava avistando um vilarejo de casas rústicas e pouco mais à frente, uma entrada para a via paralela que a levaria por mais vinte minutos ao seu destino.
Parecia até mesmo delírio, mais uns minutos e chegaria… se o carro não tivesse simplesmente parado a poucos metros da primeira casa de pedra e madeira da vila.
Paloma respirou fundo, apoiando a cabeça no volante e se empenhando em manter o pensamento positivo. Pegou o celular procurando por sinal, que para o seu completo azar, não havia nem meio ponto.
Não desanimou, saiu do carro e abriu o capô, procurando qualquer sinal de algo fora do lugar, que justificasse a parada repentina.
Nada.
Os últimos raios de sol começavam a desaparecer atrás da enorme montanha de gelo, à medida que o desespero substituía a pouca positividade que lhe restava.
Cansada e sem ter a quem recorrer, buscou seu kit de sobrevivência, pegando a lanterna e caminhando até a vila, na esperança de conseguir ajuda com o seu problema, ou ao menos outra forma de continuar o trajeto.
As casas pareciam vazias, muitas não tinham iluminação, as vielas estavam vazias e sequer havia uma alma penada perambulando pela praça central, — claramente efeito da ventania cortante, que se intensificava a cada minuto.
Paloma bateu em algumas portas, sem obter resposta foi submetida a buscar algum abrigo para escapar da neve que começava a cair.
Esfregou os olhos numa tentativa de enxergar melhor e avistou o que parecia ser uma capela mais afastada das casas daquele lugar. À medida que a neve caía, ficava cada vez mais difícil de caminhar, seus dedos já congelados se friccionavam a fim de aquecer — mesmo que pouco.
Paloma entrou sem bater na porta, encontrando um local tão abandonado que algumas gramíneas tomavam conta de vãos entre a madeira antiga. Ao menos ali não ventava, pensou buscando alguma coisa parecida com uma lareira.
Havia velas expostas em uma espécie de púlpito, junto a uma imagem desgastada, pendurada no centro da parede. Não era uma imagem de Cristo, como normalmente se encontra em locais como aquele, mas uma pintura de duas figuras duelando entre si.
Paloma procurou seu isqueiro no bolso, acendeu uma das velas e aproximou a claridade das chamas daquela imagem estranha. Chamava-lhe atenção como pólen para abelha. Era impossível negar a atração que a forçava a manter os olhos no que pareciam dois deuses em guerra. Paloma deu um passo à frente, tentando enxergar melhor os detalhes que compunham aquela obra, e pega de surpresa, o chão se desfez sob seus pés.
O impacto não foi imediato.
Paloma rolou por alguns metros antes de parar sobre um solo úmido, coberto por musgo e pedra antiga. A dor veio depois, espalhada pelos joelhos e pelas mãos, suportável. O silêncio, porém, era outro. Não era ausência de som, mas um peso. Como se o mundo acima tivesse sido fechado junto com o buraco.
A luz havia se apagado na queda.
Por alguns segundos, ela apenas respirou, tentando entender se ainda estava acordada. O frio ali embaixo era diferente. Era um frio de ausência, como um espaço onde algo essencial deixara de existir.
Quando os olhos se acostumaram à penumbra, percebeu que não estava em uma simples cripta. As paredes eram de pedra talhada, marcadas por símbolos antigos. Haviam círculos partidos com figuras humanas de braços erguidos e um sol riscado ao meio, como se tivesse sido ferido.
No centro do espaço, uma fogueira apagada.
Paloma se aproximou.
Ao tocar as pedras enegrecidas, algo antigo atravessou seu corpo.
Ela viu homens e mulheres reunidos naquele mesmo lugar, rindo, cantando, dividindo pão e vinho. Crianças corriam entre eles enquanto o fogo ardia alto, forte o bastante para desafiar o inverno. Acima, o sol brilhava como se jamais fosse se pôr.
Então a visão se partiu.
Gritos. Sombras. Uma presença colossal cobrindo o céu. O sol sendo empurrado para longe, como um corpo ferido. E o frio vindo, não como estação. Ele era uma sentença.
Paloma cambaleou para trás, levando a mão ao peito.
— Isso não é real… — murmurou, buscando se ancorar.
Uma voz respondeu.
Não vinha de lugar algum, e de todos ao mesmo tempo.
— Foi. E ainda é.
Ela girou, o coração disparado.
— Quem está aí?
— Alguém que ainda escuta.
Do fundo da câmara, um brilho cansado começou a surgir. Não era chama nem reflexo, mas algo que lembrava o último vestígio de um amanhecer esquecido. Aos poucos, a silhueta tomou forma humana, parecendo antiga demais para ser apenas isso.
— O que é este lugar? — Paloma perguntou.— Um santuário. — disse a figura. — Aqui, no fim do ano, eles se reuniam para lembrar quem eram e aquecer uns aos outros… Para me chamar.

Imagem ilustrativa gerada com IA para fins visuais.
— Você é… um deus?
O sorriso que ele ofereceu era triste.
— Fui. Enquanto acreditaram juntos.
Ela entendeu antes que ele explicasse.
— O inverno… — murmurou. — Não é só o clima.
— Nunca foi.
Ele se aproximou. Um calor quase imperceptível tocou sua pele.
— Quando fecharam as portas, o frio entrou primeiro no coração. Sem união, eu adormeço. E quando durmo… o sol não retorna.
Paloma pensou na vila vazia, cheia de casas fechadas. Em si mesma, sozinha na estrada, tentando chegar a uma ceia que talvez nunca acontecesse.
— Por que eu? — perguntou. — Eu não pertenço a este lugar.
— Pertence a este tempo. — respondeu ele. — E ainda acredita.
Algo dentro dela reconheceu aquela verdade.
— O que eu faço?
O deus olhou para a fogueira apagada.
— O que sempre foi feito. Reunir. Lembrar…
— Eles não vão ouvir.
— Então acenda algo que eles não consigam ignorar.
Quando piscou, estava novamente na capela. A vela permanecia acesa, intacta.
O frio piorou lá fora.
Não o frio que morde a pele, mas o que pesa nos ossos como culpa antiga. A praça permanecia vazia. No centro, um círculo de pedras cobertas de neve, restos de algo que já fora essencial.
Ao tocá-las, sentiu a presença outra vez.
— Aqui era o coração — disse a voz. — Onde o sol era chamado de volta.
Sob a neve, símbolos como espirais solares e figuras humanas formando um círculo ao redor do fogo.
— Eles esquecem fácil — murmurou Paloma.
— Esquecem quando dói lembrar.
— E o outro? — perguntou. — O da pintura.
O vento respondeu antes da voz.
— Ele se chama Nocthyr. — disse o deus da luz. — Não nasceu mau. Cresceu quando o medo cresceu. Vive do isolamento.
O céu escureceu de forma antinatural. Uma sombra colossal moveu-se entre as nuvens.
— Tarde demais — ecoou Nocthyr. — Eles já escolheram.
— Não escolheram — disse Paloma. — Só esqueceram.
Ela correu. Arrastou madeira. Gritou e chamou.
Silêncio.
Até que duas figuras surgiram da neblina. Riram duvidando, mas ainda assim, ajudaram.
Quando a fogueira foi acesa, o fogo subiu alto, dourado, rasgando a noite.
As portas abriram, primeiro por curiosidade, mas depois por necessidade.
A lembrança começou a ferir a escuridão.
Nocthyr recuou, dissolvendo-se.
— Enquanto houver uma noite em que escolham ficar — disse o deus da luz, agora pleno
— eu retorno.
O sol nasceu. Como resposta.

Imagem ilustrativa gerada com IA para fins visuais.
Quero muito agradecer por caminhar até aqui comigo, e conosco.
Escrever esta história foi também um gesto de lembrança para mim…
Desejo que este texto encontre você em algum ponto de silêncio, e que acenda, ainda que pequeno, algo que valha a pena reunir.
Este conto foi escrito em parceria com Elis Guestari, uma mulher e escritora que admiro profundamente, pela sensibilidade, pela imaginação e pela coragem de criar mundos que tocam.
Se quiser conhecer mais do trabalho dela, recomendo muito acompanhar no Instagram @ElisGuestari e no Wattpad @ElisGuestari
Feliz Natal.
Entre versos e universos,
Julia Abreu e Elis Guestari


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