Cósmico leitor,
Algumas histórias não vêm para explicar, vêm para inquietar.
A narrativa de hoje mergulha no mistério que habita entre as palavras não ditas e nas portas que se abrem para lugares que não deveriam existir.
É um conto narrado em primeira pessoa, com um início suave e um final que, talvez, nem queira ser entendido.
Apenas sentido.
A Casa da Colina Que Não Estava Lá
Eu não estava procurando por nada naquela tarde.
Sabe aqueles dias em que a alma está cansada até de pensar? Peguei a bicicleta, saí sem rumo e deixei o vento decidir por mim. O céu estava entre o lilás e o chumbo, do tipo que ameaça chuva, mas nunca cumpre. Eu segui por uma estrada de terra que nem lembrava que existia. Nunca tinha ido tão longe. E talvez, por isso, tenha encontrado.
A casa.
Ela surgiu no alto de uma colina, como uma lembrança que você não sabe se é real ou sonho antigo. Tinha janelas grandes, cortinas esvoaçantes, um jardim que crescia em desordem poética e uma cerca baixa, quase como um convite. O tipo de lugar que não combina com o mundo real, e justamente por isso, me atraiu.
Larguei a bicicleta, empurrei o portão (que rangeu como se fosse parte de um filme) subi a colina e logo, os degraus da varanda com o coração apertado por uma curiosidade que não era minha. Eu não sei explicar, mas era como se algo ali me esperasse há muito tempo.
A maçaneta girou com facilidade. Nenhum alarme, nenhum tranco. Apenas o cheiro de madeira antiga, incenso e… algo doce. Talvez baunilha. Não tenho certeza.
Entrei.
A casa era viva. Não no sentido assombrado, mas viva como um lugar que já amou e foi amado. Havia livros abertos no sofá, uma chaleira ainda quente sobre a mesa, um espelho oval pendurado na parede que refletia mais do que meu rosto.
Foi nele que vi.
Não sei se você já sentiu isso, mas… meu reflexo piscou antes de mim.
Travei. Meus pés congelaram no chão de tábuas escuras. Olhei de novo. Eu ali, idêntica, mas com um colar que eu não usava e os olhos levemente tristes. A outra-eu me encarou como quem reconhece um velho erro.
Pisquei de novo. Era só eu, normal, meio descabelada da bicicleta, sem colar nenhum. Mas algo dentro de mim mudou. Como se, por um segundo, eu tivesse esbarrado em outra versão de mim… Uma que tomou decisões diferentes.
Continuei andando pela casa. Cada cômodo parecia uma parte de mim que eu tinha esquecido. Um quarto com fotos que nunca tirei. Um diário com minha letra, mas com histórias que não vivi. Uma lareira acesa sem ninguém ali há tempos. Um gato cinza dormindo no tapete e me ignorando solenemente, como se fosse comum eu estar ali.
Não encontrei ninguém. Nenhum som além do meu coração acelerado.
Até que, na cozinha, vi uma porta entreaberta que dava para o porão.
E, em cima dela, um bilhete colado com fita desgastada:

Não entrei.
Eu deveria ter entrado? Talvez. Mas algo me dizia que aquela porta não levava a um porão qualquer. Talvez levasse… Para dentro de mim?
Voltei pela varanda, a bicicleta ainda onde deixei. Mas, quando desci a colina e olhei pra trás…
A casa não estava mais lá.
Nada. Só o campo aberto e o céu, agora cor de vinho.
Desde então, eu sonho com aquela outra versão de mim, aquela que usava o colar e parecia ter vivido algo que eu nunca vivi. E, às vezes, quando estou muito cansada, penso se a casa vai aparecer de novo. Se vou ter coragem de entrar. Se, um dia, vou abrir a porta do porão.
Mas, por enquanto, só carrego comigo a lembrança de algo que talvez tenha inventado. Ou não.
Quem sabe?

E você, cósmico leitor?
Já sentiu que esteve em um lugar que ninguém mais viu?
Entre versos e universos,
Julia Abreu
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