

O Reencontro e a Ruptura
Há algo de inquietante na forma como o tempo desacelera quando nos aproximamos demais do passado. Liora sabia disso. Sabia desde o instante em que tocou o terceiro objeto, a Ânfora do Infinito. Ela se encontrava dentro da Cavilha do Silêncio, selada no Reino Nebuloso de Orelhar. Não era apenas o som que desaparecia quando alguém a usava, era o próprio julgamento do mundo que se calava. E, ironicamente, foi naquele silêncio que ela o ouviu.
Tharem.
Um nome sussurrado pelos guardiões, esquecido pelos mapas e tatuado em alguma dobra da sua saudade. Ele surgiu como um holograma feito de carne e sombras.
— Você veio atrás da parte Ânfora, ou de mim?
Ela deveria ter dito que era o amuleto. Que sua missão era mais importante que qualquer romance, que a prosperidade dos Reinos dependia da união das partes. Mas havia algo na voz dele, uma mistura de floreio e confissão, que a desarmava. E ela… Cedeu.
Os dias passaram como quem não quer ser notado. Criaram uma rotina entre missões: uma chaleira sempre no fogo, os olhos atentos ao mapa das estrelas, deixando os dedos se encontrarem por acidente… Ou propósito. Às vezes, ele colocava um bolero antigo para tocar, e tudo parecia suspenso, como se até o tempo dançasse entre eles.
Liora não sabia como chamava aquilo, mas amor parecia pequeno demais. Ela usava paciência para lidar com os silêncios dele. Às vezes, o encontrava no escuro, olhando para as mãos como se nelas houvesse algo que não conseguia lavar.
— Por que você me olha assim? — ele perguntava.
— Como se eu estivesse tentando entender quem você é de verdade?
Era ali, no intervalo entre as perguntas e os sorrisos, que o suspense se alastrava. Havia algo não dito. Uma ausência de igualdade na entrega. Mas Liora queria acreditar. Naquele ponto da jornada, ela já tinha enfrentado a corrupção do Reino Destro, a agrura dos espelhos da Névoa, a correria do Vento Norte e tantas outras coisas. Precisava de um porto. Tharem era o mais próximo de casa que encontrara.
Até que, numa noite em que as constelações pareceram mudar de lugar, ela encontrou um pergaminho escondido sob o travesseiro dele. Um mangá antigo, das Eras Perdidas, cujos traços haviam sido riscados com mensagens codificadas. Ela reconheceu o símbolo da Ordem Cítrica, os destruidores dos amuletos. E abaixo dele, algo pior:
As mãos de Liora tremeram. Ela tentou negar. Tentou culpar o medo, o destino… Mas havia mais. Um diário. E nele, as palavras que despedaçaram sua alma com precisão cirúrgica.
Era a letra dele. A verdade dele.
A gratidão que sentira por aquele reencontro, por aquele toque, virou poeira. O que ela tomara por propósito, era armação. Agora ela sabia que tudo não passava de churanha, esse dom envenenado de iludir com afeto. O que chamava de paixão, era um plano herdado. Tharem, o seu Tharem, era descendente direto dos que haviam destruído o arco.
E ela, o alvo.
A arrogância dele não foi em se aproximar. Foi em achar que ela não descobriria. Liora fechou o diário com força, segurando as lágrimas com os dentes.
Na manhã seguinte, ele a encontrou na beira do lago, segurando o pedaço do amuleto. Os olhos dela não eram mais os mesmos. E, antes que ele dissesse qualquer coisa, ela sussurrou:
— Você não cansa de ser mal?
Não houve grito. Nem lágrima. Apenas um silêncio cheio de expiação, como se ela tivesse deixado ali não só o homem que amou, mas também a última esperança de inocência.
Ela partiu sem complacência, pisando firme sobre as folhas secas do arrependimento.
Deixe um comentário