Cósmico leitor,

 

Algumas histórias nascem para nos fazer pensar. Outras, para nos fazer correr.

Mas, de vez em quando, surge uma que parece ter sido escrita por alguém que nos conhece bem demais, alguém que vive do outro lado da página.

 

Essa é uma dessas.

Uma história que mistura terror com um toque irônico, como se risse baixinho enquanto você lê.

Um conto sobre uma biblioteca… não qualquer uma.

Mas aquela onde os livros leem você.

 

Se você tem coragem de abrir páginas que podem virar espelhos, é melhor entrar em silêncio. E nunca, nunca mesmo, ir até a estante do fundo.

 

 

 

A Biblioteca Onde os Livros Leem Você

 

Eu não deveria ter seguido o gato.

 

Mas, sinceramente, alguém algum dia conseguiu resistir a um gato preto atravessando uma viela chuvosa com ar de “venha-se-perder”? Eu não consegui. E é assim que as histórias estranhas começam, né? Com chuva, curiosidade e a absoluta certeza de que você só deveria ter voltado pra casa.

 

A viela parecia mais longa do que caberia naquele quarteirão. Quando o gato parou diante de uma porta de madeira escura, com uma placa torta escrita “Biblioteca Municipal de Carontes”, meu primeiro pensamento foi “nunca ouvi falar dessa cidade”. O segundo “Desde quando há uma biblioteca aqui”. O terceiro foi calado pelo ranger da porta abrindo sozinha.

 

E é claro que entrei.

 

A primeira coisa que notei foi o cheiro de mofo e… um leve aroma de café com canela. Quase aconchegante, se não fosse pela iluminação – nenhuma. Só filetes de luz filtrando por frestas improváveis, revelando prateleiras que pareciam crescer até o teto, cobertas de livros. Aliás, nenhum livro tinha título. Só capas gastas e uma fina camada de poeira — exceto por um. O que caiu no meu pé.

 

Sim, caiu sozinho.

 

Era um volume grosso, de capa avermelhada, sem título. Quando abri, esperava páginas em branco ou uma língua antiga e demoníaca. Mas lá estava: meu nome. Completo. Data de nascimento. A primeira frase que falei na vida. O bilhete que escondi na sétima série. O sonho recorrente com a casa inundada. Cada capítulo era um pedaço de mim que eu nem lembrava.

 

Fechei com força. Tentei devolver à prateleira, mas o livro se recusava. Ele escorregava, caía de novo, como um cachorro que insiste em te seguir pra casa.

 

Foi aí que reparei nas outras pessoas. Espalhadas pela biblioteca, algumas sentadas em poltronas antigas, outras em pé, paralisadas, segurando seus próprios livros. Todos com expressões de quem tinha lido algo que não queria saber.

Me aproximei de uma senhora de coque apertado e xale bordô. Ela segurava um livro branco como os olhos dela. Ela sussurrou, sem me olhar:

 

— Se você chegou até aqui, ainda dá tempo de ir embora.

 

Tarde demais.

Eu já tinha virado mais páginas do que deveria.

 

De repente, as estantes se moveram. Como se respirassem. Uma risada suave ecoou entre os corredores, e parecia vir dos livros. Ou de mim. Eu não sei. E então, uma voz (daquelas que não vêm de fora, mas de dentro da cabeça) sussurrou:

 

— Está gostando da leitura, protagonista?

 

Corri. Nem pensei. Só corri. Derrubei livros, tropecei numa pilha de enciclopédias da década de 30, bati a canela numa estante que jurava não estar ali antes. A porta ainda estava aberta. O gato preto me olhava, agora do lado de fora, como quem pergunta: “já leu o suficiente?”

 

Saí. E a porta se fechou atrás de mim.

 

Desde aquele dia, eu parei de frequentar bibliotecas. E livrarias. E sebos. Qualquer coisa que tenha a ver com livros.

 

Mas ontem chegou uma encomenda na minha casa. Um envelope grosso, com carimbo nenhum. Dentro dele, apenas uma coisa:

 

Um livro em branco.

 

Na capa, escrito à mão, com uma caligrafia parecida demais com a minha:

 

“História inacabada de um leitor fujão.”

 

A página 1 começa a se preencher sozinha toda noite.

 

E, curiosamente, sempre acerta o que sonhei.

 

 

 

E você, cósmico leitor?

Se abrisse um livro que contasse a sua vida, você teria coragem de ir até o fim?

 

Entre versos e universos,

Julia Abreu

Categorias:

Fragmentos Literários

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