O Despertar do Último Objeto

 

Liora já havia atravessado vinte reinos, perdido dois dedos, e enterrado três aliados. Estava na beira do colapso.

Mas faltava apenas um.

O sétimo.

O Espelho do Amor Interestelar.

 

Durante anos, disfarçou esperança com sarcasmo. Era mais fácil rir do que admitir que ainda acreditava no que chamavam de amor perene. O último objeto não estava guardado num cofre, nem selado por magia. Ele estava dentro de alguém. E seu nome era.. Kariel.

 

Ele apareceu primeiro nos registros da Resistência, durante o Incidente do Nevoeiro Silente, um fenômeno alucinante que apagava a memória emocional das vítimas. A maioria voltou vazia. Ele voltou com um sorriso. E um traço nos olhos que fazia qualquer pessoa desacreditar de sua própria sagacidade.

 

Os arquivos o descreviam como envolvido num caso antigo, um romance proibido com uma das agentes da Ordem da Luz (motivo que o fez desaparecer por três ciclos solares). Depois disso, ninguém mais confiava nele por completo. Nem ele mesmo.

 

“Kariel é uma churéia”, sussurrou uma velha Guardiã. “Bonito demais pra ser confiável. Inteligente demais pra ser bom.”

 

Liora encontrou-o numa clareira de sossego suspeito, sob um sol ensolarado que parecia ignorar a tensão do mundo. Ele cultivava arroz em plena floresta. Sozinho. Cantando uma música antiga, de uma língua que ela não reconhecia.

 

— Você veio por mim ou pelo espelho? — ele perguntou, sem olhá-la.

 

Ela odiava perguntas espelhadas. Respondeu com silêncio.

Kariel riu. Um riso efusivo, e ao mesmo tempo melancólico, como um interlúdio entre duas verdades.

 

— Achei que você já soubesse. O espelho… não está comigo. Eu sou o espelho.

 

Havia algo de monstruosamente poético nessa revelação, mas Liora apenas travou.

 

— Isso é impossível.

 

— O Arco não foi feito pra ser simples.

 

Ela hesitou. O instinto gritava. Mas também gritava quando conheceu Tharem — e ignorá-lo quase a matou.

Dessa vez, não haveria brechas.

Ela o amarrou.

 

Literalmente.

 

Fez um círculo de concentração com sal vulcânico, recitou os versos proibidos do Códice das Raízes, e então, selou Kariel dentro de um campo energético. Precisava suscitar a verdade. Precisava ter certeza de que não era mais uma ilusão com rosto bonito.

 

— Se você é o espelho, me mostre.

 

— Não funciona assim — ele respondeu.

 

— Não? Então vou quebrar você. E ver o que sobra.

 

Ele sorriu com ternura desconcertante.

 

— É isso que fazem com o amor quando ele é real? Tentam destruí-lo?

 

Ela não esperava isso. Esperava negação, resistência, arrogância. Mas ele só estava… ali. Aceitando. Como se soubesse que aquilo era necessário.

 

— O espelho só revela quando se quebra por dentro — ele disse, colocando a própria mão sobre o peito. — Quer a verdade? Precisa entrar. Ver tudo. Inclusive o que vai te destruir.

 

Liora não sabia se era talento ou loucura o que via nos olhos dele. Mas entrou. E o que viu… quebrou o mundo.

 

Ela viu o rosto da mãe, o grito sufocado do pai. Viu a infância apagada por feitiços, os treinos com palavras de ordem escondidas em músicas infantis, as cicatrizes que ele nunca mostrava, nem para si mesmo. Viu solidão. Viu ódio. Viu amor demais. E uma imagem final:

 

Ela mesma.

Carregando o sétimo objeto.

Desde o início.

 

O espelho nunca foi para ser encontrado. Foi para ser reconhecido. O último objeto era o reconhecimento do amor verdadeiro,  e do falso também.

 

Kariel não era um guardião. Ele era um gatilho. O último teste. Quem o matasse, perderia tudo. Quem o amasse sem ilusões, completaria o Arco.

 

Ela caiu de joelhos. Pela primeira vez em anos, chorou sem culpa.

 

— Eu te odeio. — disse.

 

— Eu sei.

 

— Mas eu também… — ela não conseguiu terminar. Estava exausta. Com sono, com raiva, mas com um breve alívio por ainda estar viva.

 

Kariel se ajoelhou ao lado dela e encostou a testa na dela.

 

— Pode quebrar, Liora. A gente sempre recomeça. O amor não é o fim. É o recomeço.

 

Ela não respondeu. A mente girava entre perda e um lampejo estranho de animação, como se o caos tivesse, por um segundo, lhe devolvido uma centelha.

 

 

Na manhã seguinte, ele desapareceu.

 

No lugar onde estivera, havia apenas um fragmento brilhante: a sétima parte do Arco. E um bilhete:

 

 

Liora segurou o último fragmento como quem segura um osso recém-fraturado…

Agora o Arco estava completo. Mas ela, não.

 

Ela olhou ao redor. Nenhuma trilha. Nenhum inimigo. Nada.

 

Só ela.

 

E um poder antigo demais para qualquer um carregar sozinho.

 

Ela entendeu ali que aquilo nunca foi sobre encontrar os objetos.

Foi sobre descobrir o que fazer com eles quando não houver mais ninguém olhando.

 

E então ela sorriu. Pela primeira vez sem ninguém por perto.

Não por alívio.

Mas porque sabia o que vinha depois…

 

E ninguém estava pronto.

 

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Fragmentos Literários

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