
O Último Passo
Liora ficou parada por longos minutos, sentindo o peso do último fragmento na palma da mão. Não era apenas o recomeço da jornada. Era o propósito que tinha jurado nunca perder.
A cada passo, tentou agilizar a descida do monte, mas o corpo gritava. A mente, porém, estava estranhamente calma. Talvez fosse o efeito daquela mistura rara de amabilidade e brutalidade que Kariel havia deixado como marca.
No vale, a antiga ponte de pedra a esperava — o limiar final.
As lendas diziam que ali, uma gárgula desperta separava os que buscavam o Arco por poder, e os que o buscavam por amor.
Ela não acreditava em lendas. Mas, depois de tudo, aprendeu que descrença não anula perigo.
A criatura ergueu-se das sombras, olhos como dois diamantes em chamas.
— Nomeie o que deseja, portadora — exigiu.
A voz fez vibrar o úmero fraturado de Liora.
Ela pensou em sucessos, em vitórias, na coragem que precisou para não se perder. Pensou na tristeza, na ansiedade, e nos momentos de reciprocidade que ainda acreditava existirem.
Mas o que disse foi:
— Esperança.
O monstro riu, um som seco como folhas queimando.
— Esperança? Isso não compra poder. Não compra sorte. Não compra livros, nem exércitos. Não compra nada. Nada!
— Não — ela respondeu, concisa. — Mas compra tempo.

Houve silêncio. E então, a gárgula se curvou. A argola dourada no chão abriu um portal.
Liora atravessou, sentindo o peito desanuviar.
No centro, o Arco inteiro a aguardava, agora pulsando com uma luz estelar. Não havia coro, nem anjos, nem Deus falando do alto, ninguém. Apenas ela, e o poder bruto de séculos condensado.
Segurou o artefato e sentiu uma pressão indescritível. Era como segurar um universo.
Não era para ser usado por vaidade ou capricho.
Era um presente. E também uma sentença.
De repente, Kariel estava lá. Não como homem, mas como reflexo na superfície do Arco.
— O que vai fazer agora? — perguntou ele.
Ela respirou fundo.
— Não vou manter. Nem destruir. Eu vou dividir…
E, com um gesto, quebrou o Arco em sete novas partes, espalhando-as para além dos reinos.
Era um ato sem garantias. Mas a sabedoria dizia que poder absoluto não deveria ter um único dono.
No instante em que o fez, sentiu-se livre. Não rica, não invencível. Apenas… livre.
No chão, um pequeno kiwi rolou até seus pés. Ela riu.
Talvez fosse sorte. Talvez fosse só o universo com um humor estranho.
O céu clareou. O vento pareceu um abrigo.
Liora sabia que não teria mais Kariel, nem Tharem, nem os caídos.
Mas tinha algo maior: um mundo com chance de tentar de novo.
E foi então que ela viu. Ao retornar à aldeia mais próxima, notou um detalhe quase imperceptível:
As pessoas olhavam umas para as outras com mais amabilidade, crianças corriam com livros nas mãos, e até os guardas pareciam menos hostis. Pequenos gestos de coesão surgiam como fagulhas.
O desejo de sobrevivência estava se transformando em desejo de viver.
Dias depois, histórias começaram a chegar: vilas rivais trocando recursos, mercadores partilhando comida sem cobrar…
Era incrível como uma única faísca podia acelerar mudanças.
E, também, extraordinário perceber que a esperança não precisava de séculos para florescer, porque às vezes, só precisava de alguém disposto a não desistir.
Liora entendeu que o Arco nunca foi sobre poder. Foi sobre lembrar que até nos piores dias, um gesto de coragem e amor podia redesenhar o mundo.
Porque algumas histórias não terminam com fim.
Elas se transformam em recomeços.
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