
O Horizonte do Derradeiro Retorno
A noite caía lenta sobre a cidade, tingindo o céu de um roxo estranho, como se Deus tivesse pincelado o firmamento com restos de fogo. Do outro lado da rua, um gato preto meneou a cauda, olhando-me como se conhecesse todos os meus sentimentos escondidos. Eu sempre tive medo de gatos, mas aquele parecia diferente, quase humano, quase um presságio.
Segui andando, tentando ignorar o olhar felino que me acompanhava. Minhas mãos tremiam, e pensei em como a vida era uma sucessão cíclica de encontros e desencontros, de recomeços e finais. A maternidade, por exemplo, havia me arrancado a juventude com violência, mas me entregara algo que chamavam de felicidade. Só que a felicidade era escorregadia, fugidia como espuma. Os filhos crescem, a rotina sufoca, o trabalho suga e a solidão vem como um diagnóstico inevitável.
Nessa noite, contudo, a solidão não era o que mais me assustava. Era o horizonte escuro, coberto por uma estranha névoa, onde vozes sussurravam um romance proibido, entrelaçando paixão e morte.
Entrei na velha casa abandonada no final da rua, aquela onde diziam que uma cigana havia morrido queimada em plena combustão de velas e ódio. O chão rangia, e sobre um tamborete quebrado, vi algo que não deveria estar ali. Era um exemplar de Moby Dick aberto na página 237, onde alguém escrevera à margem a palavra “oportunidade” com letras vermelhas.
Havia cestas espalhadas pelo chão, cheias de roupas antigas. Entre elas, uma blusa xadrez que reconheci imediatamente, pois era minha, mas eu nunca havia pisado naquela casa. A sensação de saudade me atravessou como uma faca, mas não era saudade de algo que vivi, e sim de algo que ainda estava por vir.
Do teto pendia um mapa da Índia, rasgado, com buracos que deixavam escapar fragmentos de uma constelação que brilhava de dentro da madeira. Toquei e senti calor, como se o céu tivesse sido guardado ali, em segredo.
De repente, uma voz grave ecoou:
— O derradeiro retorno começa agora.
A figura que surgiu diante de mim era impossível de descrever. Tinha a essência de um homem, mas a intensidade de uma fera. Seus olhos eram estrelas mortas. Ele falava de resiliência, de alma, de amor e até de liberalismo como se fossem peças de um tabuleiro invisível.
Quis correr, mas meus pés estavam presos. O magnífico desconhecido estendeu a mão, e eu senti a necessidade estranha de acolher o convite. Era como pular em águas geladas de natação sem saber nadar.
— A vida é uma leitura, e você escolheu o livro errado — disse ele, fechando o Moby Dick com um estrondo.
Um vento gélido apagou todas as velas. O medo tomou conta de mim, mas junto dele veio uma súbita onda de confiança, como se finalmente eu tivesse encontrado meu lugar no inexplicável.
A figura sorriu de forma oblíqua, quase zombeteira, e completou:
— Não é preciso entender. Apenas caminhar. O horizonte vai se abrir diante dos teus olhos, e será tanto terror quanto maravilha.
E quando pensei que era apenas fruto da minha mente exausta, ouvi o som suave de páginas sendo viradas, embora nenhum livro estivesse aberto. O gato preto meneou a cauda como quem já sabia daquilo, e a constelação parecia respirar pela janela, como se quisesse me lembrar de que tudo é cíclico, até o medo.
Foi então que percebi: havia algo de magnífico no silêncio que se formava. Não era vazio, mas um convite. A vida, com seus retornos e combustões, parecia me dizer que sempre haverá um horizonte à frente, mesmo quando acreditamos ter chegado ao derradeiro ponto.
Não sei se era Deus, se era a cigana, ou apenas minha própria alma refletida em outro espelho, mas tive a impressão de que alguém ainda me observava. O ar carregava a intensidade de uma presença que não se revelava, como se esperasse o momento certo para me acolher ou me desafiar.
E, por um instante, senti que cada palavra dita até então era só um prólogo, uma preparação, um treino de natação antes do mergulho real.
Porque talvez a verdadeira história ainda não tivesse começado.

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