Imagem ilustrativa gerada com IA para fins visuais.

Eu não pedi isso

Eu só queria dormir em paz. SÓ ISSO.
Mas ele não consegue parar de encher o saco. Sabe, já deveria estar cansado de me atrapalhar, mas não. Claro que não.

E hoje começou cedo.

Acordei com o despertador, meu celular estava preso no teto com durex.
No TETO.

— Sério? — murmurei.

Desgrudei o aparelho com a delicadeza de quem arranca um curativo ruim e fui até a cozinha, onde dei de cara com um prato vazio e uma mensagem escrita com grãos de amendoim:

“Hoje você vai viver uma aventura. Não reclame.”

ÓTIMO.

Olhei para o lado e lá estava ele, Fabrício, equilibrado na pontinha da bancada, com aquela plaquinha horrível dele prestes a ligar uma das 37 músicas no rádio.

— Bom dia, flor do dia! — disse ele, com um entusiasmo que deveria ser ilegal antes das nove da manhã.

— Não. Nem vem. — falei, erguendo a mão como quem espanta uma arara irritada.

Mas ele continuou.

— Hoje é dia de trabalho espiritual! Missão de realização pessoal, transformação, blá blá blá…

— Fabrício, eu juro, se envolver dissecação ou qualquer coisa que me faça sofrer, eu te coloco dentro da privada e dou descarga.

Ele deu um sorrisinho.
O que é sempre mau sinal.

— Relaxa, é só uma aventura rápida. Coisa de dez minutinhos.
— Fabrício…
— Ok, talvez trinta. Ou duas horas. Enfim, depende do crocodilo.

— DO QUÊ?!

Antes que eu pudesse gritar, ele abriu a porta da área externa, como se apresentasse um espetáculo. Caiu ali um pouco de chuva fina, e o som do mar ao fundo parecia mais alto do que o normal.

Foi então que eu vi.
No meio do quintal.

Um crocodilo.
De capacete.
Com um colar de pérolas.
E segurando na boca um papel com a palavra papibaquígrafo escrita em letras brilhantes.

— Eu… — comecei. — Eu tô tendo um pesadelo, né?
— Não! — respondeu o desgraçadinho. — Isso é esperança se manifestando de forma criativa.

— ESSE BICHO É O QUÊ, UM SÍMBOLO DE FELICIDADES?

Enquanto eu tentava entender porque meu destino envolvia répteis e acessórios, Fabrício escalou uma cadeira, apontou a plaquinha para mim, anunciando:

“Missão 2: Recuperar o Diamante da Paixão.”

— O quê?
— O crocodilo engoliu. Eu deixei no chão ali fora, e ele acabou engolindo. — explicou ele, como quem comenta algo trivial. — Agora precisamos pegar de volta antes que ele entre em perdição emocional.
— Fabrício, você perdeu todo o juízo. Eu não vou meter a mão na boca de um crocodilo!
— Claro que não — disse ele. — Você vai usar isso aqui.

E me entregou… um computador velho.
Literalmente.
Um computador.

— O que eu faço com isso?
— Tenta conversar com ele. — disse Fabrício. — Ele gosta de tecnologia.
— ELE É UM CROCODILO.
— Mas com hobbies!!!

Respirei fundo. Resiliência, me disseram um dia. Resiliência vem.
Mentiram.

No fim, o crocodilo só queria ouvir um audiobook de romance. De “amor épico do mar ao infinito”, narrado por um ator com voz sensual. Eu coloquei no computador, ele se acalmou, deixou o Fabrício tirar o capacete e deixou cair o tal “Diamante da Paixão” no chão, que parecia muito mais um cubo de gelo com glitter.

Peguei o diamante, tentando não pensar demais. Fabrício vibrou como se eu tivesse salvo o mundo.

— Viu? É por isso que eu digo que nossa amizade é a melhor coisa da sua vida!
— Fabrício, eu só quero tomar café.
— Ah, isso eu resolvo! Fiz cachorro-quente no forno!
— POR QUÊ?
— Mistura perfeita de proteína e aventura! Ah, e já é hora do almoço.

Eu comecei a rir, porque sinceramente… era isso ou chorar.

Olhei para o quintal e o crocodilo estava realmente feliz ouvindo o romance. Tinha chuva leve caindo, inclusive, caindo no meu espelho da sala que agora estava pendurado na árvore por algum motivo, e Fabrício me oferecendo um cachorro-quente com mais glitter comestível.

É.
Mais um dia normal.

Peguei o cachorro-quente.
Ele sorriu.
Eu não.

— Fabrício… — suspirei. — Se você me acordar amanhã de novo, eu…

— Relaxa! — ele me interrompeu. —  Amanhã vai ser tranquilo.

Não acreditei por um segundo.
E estava certa… Até o crocodilo piscou pra mim.

Isso nunca é bom.

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