Testemunhas do invisível

Há dias em que a dor atravessa a gente como uma hélice que gira sem controle. Um movimento abrupto. A sensação de um vento inesperado que desloca tudo por dentro.
Foi assim quando ouvi o que aconteceu.

Agora estou aqui, segurando uma caneta para escrever sobre um menino. Uma vida, mesmo imperfeita, mesmo confusa, mesmo ferida, atravessou a própria janela interna em direção ao impossível.
E ninguém conseguiu alcançá-lo.
Ninguém conseguiu suspender aquele segundo frágil em que tudo poderia ter sido diferente.

Fico tentando entender como é que chegamos aqui…
Como é que uma sociedade inteira deixa alguém cair assim, enquanto tantos apenas levantam o celular como quem ergue um tripé, como quem busca ângulo, não ajuda.

O mundo ficou tão colorido por fora, tão cheio de luz falsa, de vitrines, de brilhos, de filtros… que esquecemos de olhar o que realmente importa.
Perdemos o tato.
A escuta.
A urgência.

Dói pensar que alguém que gritava silenciosamente por ajuda acabou cercado não por mãos estendidas, mas por olhos que observam, por pessoas que confundiram presença com registro.

Ele falava de África, de leões… Alguns chamavam de delírio. Outros de rebeldia. Talvez fosse só um menino tentando encontrar um lugar onde o mundo não doesse tanto.
E eu penso em quantos chamam de “problema” aquilo que, na verdade, é só solidão transbordando?

Às vezes o sofrimento pinta a alma do outro como um esmalte lascado, discreto demais para que o mundo perceba, mas gritante para quem carrega.
Às vezes a dor é como um gato miando pela casa vazia, onde ninguém ouve, ninguém entende o pedido.
Às vezes é como um cavalo correndo solto sem destino, tem força demais, direção de menos.
Às vezes é como um cachorro inquieto tentando avisar que algo está errado, mas ninguém entende a linguagem.

E enquanto penso nisso, me revolta saber que tantos apenas assistiram.
Assistiram enquanto alguém se perdia, como se a vida fosse um filme estrelar, um espetáculo cruel projetado no meio do caos.
Como se cada passo dele fosse apenas mais um vídeo para “compartilhar no Natal”, entre os risos e os doces do fim de ano.

E onde estávamos nós, humanidade?
Onde estavam nossos braços, nossas palavras, nossa coragem de atravessar o teto e o medo para impedir o inevitável?

Há tragédias que poderiam ter sido evitadas com o simples gesto de alguém que diz:
“Eu estou aqui.”
Mas, cada vez mais, vivemos para registrar, não para cuidar. Para mostrar, não para salvar.

Enquanto isso, a vida pede ajuda.
Desesperadamente.

Penso no menino olhando aquilo tudo,  a água que dividia mundos, a leoa, o risco, o destino torcido, mas também penso no que faltou. Faltou alguém que visse que ali não havia bravura, mas dor; não havia desafio, mas perda; não havia força, mas pedido.

Um pedido como tantos que ignoramos no cotidiano. É como quando o amigo diz que está cansado, quando alguém some, quando a energia muda e fingimos não ver.
A vida dá sinais, mas a gente se acostumou a tratá-los como ruído.

No meio desse pensamento, observo minha própria rotina, as coisas banais… O carro ou a moto passando na rua, o motoqueiro com um capacete verde, o sofá, a parede fria que reflete a luz da rua, o prato rosa com restos de bolo, o casamento marcado no calendário, as férias planejadas, e aí eu percebo como tudo isso fica pequeno diante do essencial que é simplesmente cuidar do outro.

A esperança, às vezes, é só isso… Voltar a ser gente sem esperar uma coroa.
Gente que sente.
Gente que age.
Gente que vê.

Porque se continuarmos assim, filmando a dor enquanto a vida se desfaz… não haverá ressurreição, nem recomeço.
Só o silêncio triste de um mundo que já esqueceu como se amar.

Imagem ilustrativa gerada com IA para fins visuais.

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Fragmentos Literários

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