Cósmico leitor,
Nos últimos meses, tenho observado um fenômeno curioso, e um pouco triste também. Parece que estamos todos vivendo dentro de um aplicativo. Não usando um app, mas existindo nele. Cada passo ou cada sensação têm sido mediados por uma tela que decide o foco e até o humor da nossa vida.
Foi desse incômodo que nasceu o texto de hoje.

No fundo, todos nós temos um quê de Etelvina. Talvez não acumulemos aspiradores robô ou massageadores elétricos, mas certamente já dissemos um “vai que um dia precisa” que nunca se cumpriu. A crônica de hoje usa humor e exagero para lembrar que, às vezes, compramos mais do que precisamos, e reclamamos mais do que deveríamos.

Espero que, ao acompanhar Clarinha caminhando pelo labirinto de caixas, você sorria, se identifique e enxergue as pequenas ironias da nossa vida moderna. E que, de alguma forma, esse texto faça você olhar para sua própria casa (e seu carrinho de compras) com um pouquinho mais de carinho… e talvez um pouco mais de cuidado também.

 

Pedidos enviados

Dona Etelvina era uma senhora perfeitamente normal, ou teria sido, se não fosse pela sua condição moderna, a bendita Síndrome do “Comprei Porque Tava Barato”. Aos 68 anos, ela já tinha acumulado mais notificações de “pedido enviado” do que anos de vida.

A casa dela parecia um brechó que brigou com um depósito de mudanças e perdeu. Na sala, caixas empilhadas formavam quase um castelo medieval. No corredor, sacolas serviam de obstáculos que faziam qualquer visita fazer um circuito de CrossFit involuntário.

E o curioso é que Dona Etelvina reclamava de tudo. Da demora da entrega, do barulho do entregador, da caixa grande demais, da caixa pequena demais, do plástico-bolha que vinha com poucas bolhas, enfim, a mulher parecia disputar um campeonato mundial de resmungos.

Certo dia, sua neta, Clarinha, foi passar a tarde com ela. Assim que entrou, tropeçou em um massageador elétrico que ninguém lembrava ter comprado.

— Vó, você usa isso aqui?

— Claro que uso, minha filha! — respondeu Etelvina, dando um chute discreto na tomada para esconder o pó. — Uso… de vez em quando.

— Quando?

— Quando lembro que tenho — respondeu, já irritada com aquela “intromissão de criança curiosa”.

Clarinha decidiu explorar a casa, e cada cômodo revelava um mistério:

No quarto, havia três aspiradores robô ainda embalados.

Na cozinha, quatro fritadeiras sem óleo faziam fila, como se esperassem a vez de entrar em campo.

No armário, vestidos com etiqueta que datavam de dois carnavais atrás.
Era tanta coisa que mal se podia identificar tudo que havia na casa.

— Vó, pra que tudo isso?

— Ah, minha filha, vai que um dia precisa.

— E já precisou?

— Não, mas posso precisar! — resmungou, como se a menina estivesse ofendendo sua honra consumista.

Tudo seguia normal na rotina de compras e reclamações… até que algo inusitado aconteceu.

O carteiro, que já conhecia Etelvina pelo nome, entrou com mais um pacote. Só que desta vez, quando ele colocou a caixa no chão… a pilha de caixas ao lado tremeu.

Tremeu de novo.

E então, com toda a dramaticidade de um terremoto em miniatura, desabou. Era uma avalanche de encomendas. Tinha de tudo, mixer, luminária de toque, almofada ergonômica, um conjunto de panelas que ela comprou “porque tava lindo na foto”.

O carteiro saiu correndo, enquanto Clarinha pulou pro sofá. E Etelvina ficou ali, cercada pelos próprios objetos, olhando aquilo tudo com a cara de quem foi traída pelas próprias compras.

No meio da avalanche, saiu rolando um organizador de gavetas, ainda no plástico. Clarinha pegou e disse:

— Vó, acho que é um sinal…

— Sinal de quê?

— De que a senhora precisa organizar isso tudo.

— Organizar? Ah, mas isso é um trabalho…

— Melhor do que ser soterrada por um liquidificador quântico, né?

Etelvina bufou e resmungou, mas começou. E começou a perceber que realmente tinha coisas ali que ela nem lembrava ter comprado. Algumas nem sabia para que serviam.

Quando entrou na internet para finalmente cancelar as compras futuras, recebeu mais uma oferta irresistível: “Compre agora o livro “Como parar de comprar inutilidades” por apenas R$ 19,90”.

Ela pensou por longos cinco segundos, e foi o suficiente para ser considerada contemplativa, então decidiu:

Comprou dois. Além de achar interessante, vai que um dia precisa.

Imagem ilustrativa gerada com IA para fins visuais.

E você, cósmico leitor?
O que você tem guardado aí, na vida ou no coração, que talvez já tenha passado da validade?

Entre versos e universos,
Julia Abreu 

Categorias:

Fragmentos Literários

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