Imagem ilustrativa gerada com IA para fins visuais.

Até que aconteceu

A confusão começou quando a televisão decidiu ligar sozinha bem na hora da novela, aquela em que todo mundo sofre em câmera lenta e ninguém sua, mesmo vivendo no Rio de Janeiro. Eu estava sentada no chão, de roupa velha, desenhando um hexágono torto com um lápis vermelho quase no fim, tentando entender por que nada parecia ter formas definidas ultimamente.

O calor deixava tudo meio derretido. Até a garrafa de água parecia cansada.

— Vamos sair — disse a Isabela, surgindo na porta do banheiro enquanto passava desodorante em creme com uma calma irritante. — Tomar um sorvete, sei lá.

— Pra quê? — reclamei. — Nada vai acontecer. É sempre assim.

Ela ignorou, abriu a janela e apontou para o céu azul, limpo demais pra combinar com meu humor.

— Ficar em casa também não faz nada acontecer, Luana. Faz quantos dias que você não sai desde o término com aquele ser? Faça alguma coisa para a nossa amizade e saia um pouco. Certeza que sentirá gratidão.

Suspirei. Aceitei.

Descemos a rua como quem vai cumprir uma pequena obrigação social. O ar estava quase aquático, grudando na pele. Passamos por uma árvore enorme, que embaixo tinha uma planta improvável. Era uma flor. Uma linda tulipa sozinha e sobrevivendo ao absurdo daquele clima.

— Parece até novela — falei. — Tudo muito dramático para o meu gosto.

— Para de fazer o drama, quem sabe a vida fique um pouco mais leve? — disse Isabela, rindo.

Entramos numa sorveteria pequena, decorada com coisas bem aleatórias. Na parede tinha um espelho manchado, e duas pinturas, uma da Espanha e outra do Palmeiras. Estava tocando uma música meio hindu bem baixo, criando uma atmosfera estranhamente mística.

Eu ainda estava reclamando quando aconteceu.

Trombei com alguém.

Sorvete quase caiu. A dignidade caiu um pouco.

— Desculpa — disse ele.
— Eu que… desculpa — respondi.

Silêncio curto com um olhar sem jeito. Aquele segundo suspenso que parece luar em plena tarde.

— Você… — ele começou. — Quer sentar? Comer alguma coisa? Ou… outro sorvete?

Olhei pra Isabela.

Ela já estava se afastando, acenando com a mão como quem dispensa uma criança no primeiro dia de férias.

— Aproveita — disse. — Vou ali comprar comida. Ou fingir que esqueci algo. 

Sentamos. A conversa começou pequena. Falamos de coisas aleatórias: viagens que nunca fizemos e gostaríamos muito, e contei de uma passagem que quase comprei por impulso e a saudade de um Natal específico… Sobre a estranheza dos ciclos da vida. Esse ciclo estranho em que nada acontece até acontecer.

Ele gostava de azul. Azul mesmo, não metáfora.

Eu contei da tapioca que queima fácil, fazendo ele rir e me dizendo que era bom fazendo tapiocas.

Quando me virei, Isabela já não estava mais ali.

Meu celular vibrou.

“Tá vendo? Às vezes é só sair um pouco de casa pra dar chance de algo acontecer.”

Meu celular vibrou de novo.

“Ah, e o nome dele é Marcos. Beijo.”

Levantei os olhos devagar.

— Marcos? — arrisquei.

Ele sorriu, daquele jeito fácil demais.

— Sou eu. Sua amiga disse que você estaria aqui… e que eu devia chamar você pra sentar.

Pisquei.

— Ela fez isso mesmo sem te conhecer?

— Fez. E curiosamente, funcionou.

Rimos juntos, meio sem jeito, meio confortáveis demais para dois desconhecidos.

— Então — ele disse — quer outro sorvete?

Olhei em volta…

— Quero.

Enquanto ele foi pegar mais um sorvete, só fiquei pensando que às vezes a vida só espera você sair de casa para finalmente acontecer.

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Fragmentos Literários

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