
O primeiro natal com o Fabrício
Eu devia ter desconfiado quando acordei num sábado e a casa estava silenciosa demais.
Silêncio nunca é um bom sinal quando o Fabrício está por perto.
Na cozinha, havia um cesto no meio do chão e uma caixa aberta sobre a mesa com uma escova de pentear cuidadosamente posicionada ao lado de uma xícara fumegante. Tudo parecia organizado demais para ser normal.
— Feliz Natal! — anunciou Fabrício, surgindo do nada, usando uma touca vermelha e segurando um urso de pelúcia gigante como se fosse um troféu.
— Fabrício, faltam 2 semanas para o natal.
— Detalhes. — ele respondeu. — A vida não segue calendário, segue impulso. Hoje é dia de comemoração.
Antes que eu pudesse argumentar, ele abriu a janela. Uma brisa entrou, derrubando algumas flores que estavam num vaso improvisado dentro de um balde de cimento. O gato atravessou a cena como se fosse dono do lugar, ignorando completamente o caos.
— Missão 3 — disse ele, solene. — Um Natal antecipado para restaurar a esperança.
— Restaurar o quê? — perguntei, já procurando meu celular para pedir socorro moral a alguém.
— Esperança, prosperidade, essas coisas abstratas que todo mundo finge entender — respondeu ele. — Agora senta.
Sentei numa cadeira que claramente não combinava com nada. Ele colocou sobre a mesa uma sobremesa de natal claramente derretida, ao lado de um frasco de remédio, como se fosse parte do ritual.
— Isso aqui é sobre cura — explicou. — Física, emocional ou só de cansaço mesmo.
— Fabrício, eu tenho faculdade, prazo…
— E por isso mesmo — ele interrompeu — você precisa disso. Um momento extraordinário de absoluta falta de juízo.
O urso caiu no chão. Eu comecei a rir sem saber por quê.
— Às vezes, — continuou ele — a gente tenta barganhar com o mundo. Quer resultado, mas não quer bagunça. Vejo quase todos esperando milagre sem esforço. Vi no seu instagram o tanto de desesperados querendo um encontro de almas, mas não levanta do sofá, como vão conseguir alguma coisa?
Falando nisso, ele se jogou no sofá com teatralidade.
— Isso aqui não é sobre perfeição, não. É sobre simplicidade.
Peguei a xícara. O café estava bom. Estranhamente bom.
— E o que exatamente eu tenho que fazer nessa missão? — perguntei.
— Ter coragem de participar — disse ele. — Comer a sobremesa feia. Agradecer.
— Agradecer o quê?
— Tudo. Até o que deu errado. Especialmente isso. Gratidão não combina só com vitórias.
Olhei em volta. A casa parecia um cenário de circo montado às pressas. Nada fazia muito sentido, mas também não estava ruim.
— Missão concluída? — perguntei.
— Quase — respondeu Fabrício. — Falta só isso.
Ele apontou para fora. O céu estava limpo, absurdo de bonito.
— Às vezes, a gente não precisa subir até a estratosfera pra viver algo incrível — disse ele. — Basta não fugir.
Dei de ombros. Comi a sobremesa. Estava estranha, mas boa.
— Pronto — anunciou Fabrício. — Natal encerrado.
Ele juntou tudo na caixa, pegou o urso, abriu a porta e saiu como se nada tivesse acontecido.
Eu fiquei ali por alguns segundos, em silêncio.
O gato dormia no sofá.
A casa estava estranhamente em paz.
Nenhuma explosão. Só paz.
— Quer dizer que é isso? — perguntei, olhando em volta. — Nada aconteceu?
Sorri.
Um sorriso pequeno, mas sincero. Talvez eu estivesse… feliz. Sem motivo específico. Só feliz.
Nesse exato segundo, senti algo gelado, doce e pesado acertar meu rosto em cheio.
PLÁF.
Uma torta.
Uma sobremesa de natal atrasada, recheada de creme e caos, voando do nada diretamente na minha cara.
— FABRÍCIO!
Ele surgiu do corredor gargalhando, apertou um botão invisível e, imediatamente, uma das 37 músicas começou a tocar no rádio — uma versão instrumental brega e completamente fora de contexto.
— Pronto — anunciou ele, apontando para mim, coberta de creme. — Missão 3 concluída.
— Eu vou te matar.
— É, você sempre diz isso, e para complementar eu digo “não hoje” — disse ele com o peito estufado — Hoje é dia de comemorar.
E desapareceu, deixando só a música tocando e eu ali, com torta no rosto, sem nenhuma explicação plausível para nada.
Como sempre.

Imagem ilustrativa gerada com IA para fins visuais.


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