
Um Romance Aerodinamicamente Inevitável
Malu chegou à praia como quem esqueceu o manual da própria vida. Munida de uma mochila laranja vibrante e um deck gasto de Yu-Gi-Oh, ela procurava, mais do que paz, mas sim, um tipo de silêncio que não doesse. Nem sempre conseguia nomear o que sentia, às vezes era saudade, outras, só a falta de uma força emocional. Mas sabia que precisava recomeçar. E recomeçar, pra ela, era chegar onde ninguém esperava e fingir que sempre pertenceu ali.
Estava no limiar de um recomeço. A terapeuta, que era uma ex-druida da Chapada que agora vendia cursos de “des-lobotomização emocional” com certificado em PDF e jingle próprio, dizia que o mundo era feito de ciclos e Malu só precisava escolher em qual queria rodopiar sem vomitar. Falava de persistência com o tom calmo de quem já viu de perto a realidade desmoronar e depois se reconstruir com sabedoria.
Ela havia sido recém-contratada por uma escola de escrita criativa em São Paulo, onde dava aulas com nomes como “Literatura e Resiliência” e “Como não amar um personagem fictício”. Mas antes do novo semestre começar, escapou para o litoral. “Sossego é diferente de fuga”, repetia para si mesma, como se fosse verdade. E também porque uma amiga garantiu que ali morava um homem chamado Davi, com cara de quem lia Fernando Pessoa no verso dos rótulos de água de coco.
Davi morava num jardim comunitário de frente pro mar, entre uma vidraçaria e um clube de tai chi com trilha sonora ao vivo. Técnico em calibragem de bicicletas e aerodinâmica de guarda-sóis, ele se descrevia com humildade como “especialista em ficar”. Era o tipo de pessoa que oferecia chá sem perguntar se você queria, e no fim, você sempre queria. Havia algo de empatia no gesto, quase instintivo. Havia algo no alinhamento das palavras dele que lembrava um taquígrafo emocional… Era preciso e silencioso.
Eles se esbarraram, literalmente, numa feirinha local, quando um cachorro de olhar questionável derrubou a barraca de pastéis e quase levou Malu junto. Davi a segurou pelo braço no exato momento em que o pastel voava no ar como um projétil divino.
— “Esse cachorro tem mais eficácia emocional que metade dos meus ex”, disse ela, limpando frango do vestido com um guardanapo.
— “Ele é meu. Se chama Compulsivo, mas pode chamar de Compú”, respondeu Davi, sorrindo como quem tem certeza de que vai entrar na sua vida devagar, mas pra ficar.
A amizade começou. Quem diria? Mas começou… Com o tempo, chegou o romance, que veio tímido, sem data de estreia e sequer trilha sonora. Eles colocaram todas as cartas na mesa, falaram sobre seus problemas e medos. E tinha coisa para caramba… Era ansiedade, calibragem de sentimentos, compaixão intermitente, as cartas de Yu-Gi-Oh que representavam arquétipos do amor e a dúvida existencial se maratonar uma série juntos já era um pedido de compromisso. A inspiração vinha mais nos silêncios do que nos gestos.
Numa tarde amarela e cheiro de alecrim no ar, Malu o observava ajeitar as plantas do jardim. Não era bonito como os crushes da pasta que tinha no Pinterest, mas tinha algo…. Poderia ser a forma como deixava espaço, ou calma que tinha… Ou talvez fosse só o avental com estampa de dragões, quem sabe. Mas havia um cuidado no jeito como ele molhava cada vaso, como se conversar com plantas fosse um ato profícuo e íntimo.
Ela cruzou os braços e, com um olhar semi-irônico, perguntou:
— “Se eu corresse agora… você viria atrás?”
Ele parou, largou o regador, pensou, limpou as mãos no avental e respondeu:
— “Depende. Vai correndo pra mim ou de mim?”
— “Talvez só esteja testando seu condicionamento afetivo”, ela disse, movendo os ombros.
— “Então corre devagar, que eu tô de chinelo.”
Na manhã seguinte, antes do sol abrir os olhos, Malu deixou um bilhete sob a xícara de chá com sua letra meio torta de quem já não precisava de certezas:
“Saí pra correr. Mas é só pra ver se você vem atrás.”
Davi achou o bilhete, riu de leve, prendeu o cabelo com uma caneta e saiu porta afora. Foi correndo. Chinelo no pé, emoção no peito e Compulsivo latindo numa frequência quase espiritual.
Encontrou Malu no calçadão, já sem fôlego. E quando pareceu ver ele, rapidamente fingiu que estava fazendo alongamento.
— “Você demorou”, ela disse, sem olhar diretamente para ele.
— “Meu tênis tava preso na roda de uma bicicleta em transcendência”, ele respondeu, tentando parecer ofendido.
— “E aí?”, ela perguntou, virando o rosto com um meio sorriso. “Vai correr comigo ou só vai me analisar de longe?”
— “Depende. Tem café depois?”
Eles riram e começaram a sua corrida matinal.

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